domingo, 2 de maio de 2010

Coisas da memória.

Tenho saudades dos tempos em que era pequena e passava férias em casa da minha avó.
Tenho saudade dos banhos nos tanques. Das tardes na horta com o avô. Saudades de beber água do poço e de nao entender como era possível a água ser tão límpida e fresca quando vinha daquele buraco inundo, escuro e cheio de musgos. Ainda hoje não compreendo, mas a inocência da questão já se perdeu. Tenho saudades dos regressos a casa ao fim da tarde, onde o sol já tinha perdido a força e apenas amornava a pele e onde o vento já começava a ser fresco mas sem provocar frio no corpo. Os regressos onde quase sempre apanháva-mos amoras e as comíamos ali mesmo sem as lavar. Saudades de andar pelos montes de manha e ás vezes á tarde com o meu irmão. De nao termos telemóvel nem relógio e de quando descíamos e voltávamos á povoação, haver sempre alguma velhinha que dizia "olha que o teu avô já anda á vossa procura" e nós ficavam com medo que já estivesse zangado, mas nao, o avõ nunca se zangou. Tenho saudades da capela lá de cima onde se via toda a pequena povoação. De ir lá de noite e de ter medo de tomar o caminho do pinhal em vez do outro, pelas casas. Saudade de andar pela aldeia sempre a correr de um lado para o outro. Saudade de jogar ao monopólio com a "Cátia francesa" e de dançar com a "Corrólie", ela dançava sempre a musica da madonna - like a prayer ,e eu, que naquela altura só conhecia a shakira, dançava as musicas dela. De brincar aos doutores com a outra sara, a quem chamavam "sara macaca" por causa de usar aparelho. De andar com a "Ana" que sempre foi mais velha que eu, e que me fez pensar muitas vezes que nao podia esperar até ter 12 anos como a Ana, que ela saia á noite sem problemas e a minha avó ás vezes nao deixava. Saudades de pedir ao avô e á "avó reis peixe peixe", a minha bisavó que hoje ainda é viva e que está quase a fazer 100 anos, uma moeda de 50 escudos para ir jogar na máquina do café, e de ela, especialmente ela, dizer "se é para a porcaria da máquina nao te dou, se é para um gelado está bem", e eu dizia que sim, que era para gelado, ela olhava para mim e ria-se meio desdentada, e dava-me na mesma a moeda grande e fininha de 50 escudos. Tenho saudades de descer a avenida no carro vermelho que ofereceram ao meu irmão quando era pequeno. Aquele carro era mesmo fixe. Era uma espécie de carro de corrida grande, com volante a sério e tudo. Aquilo apanhava mesmo uma grande bolina na avenida. Tenho saudade das histórias de fantasmas que os rapazes mais velhos contavam, de falarem do livro de são Cipriano, dos mitos da aldeia e tudo mais. O meu irmão sempre levou aquilo muito a sério, eu não sei se acreditava ou nao, mas tinha sempre medo de passar pelo cemitério á noite, dava-me arrepios.Tenho saudade dos mercados lá da terra, de comprar roupa e guardar sempre a mais bonita para o domingo.
Tenho saudades da infância despreocupada. Tenho saudade de isto e de muito mais.